DEFINIÇÃO DO SISTEMA SOLVENTE
Muitos solventes se autoionizam com a formação de espécies catiônicas e aniônicas, como faz a água:
2 H2O |
H3O+ |
+ |
OH- |
(8) |
|
2 NH3 |
NH4+ |
+ |
NH2- |
(9) |
|
2 H2SO4 |
H3SO4+ |
+ |
HSO4- |
(10) |
|
2 OPC l3 |
OPC l2+ |
+ |
OPCl4- |
(11) |
Para o tratamento de reações ácido-base, especialmente de neutralização, muitas vezes é conveniente definir ácido como espécie que aumenta a concentração do cátion característico do solvente e base como a espécies que aumenta a concentração de ânion característico. As vantagens deste enfoque são as de conveniência. Pode-se tratar solventes não aquosos por uma analogia com água. Por exemplo:
Kw = [H3O+] [OH-] = 10-14 |
(12) |
KAB = [A+] [B-] |
(13) |
onde [A+] e [B-] são as concentrações das espécies catiônicas e aniônicas, características de um solvente particular. Escalas análogas à de pH da água podem ser construídas por similaridade, com o ponto neutro igual a -1/2 log KAB, embora na prática, se tenha feito pouco trabalho deste tipo. Alguns exemplos de dados deste tipo, para solventes não aquosos estão na Tabela 2. Entretanto, sob o ponto de vista, o efeito de "nivelação" surge naturalmente. Todos os ácidos e bases mais fortes que o cátion e o ânion característicos do solvente, serão "nivelados" pelos últimos. Ácidos e bases mais fracos que os do sistema do solvente permanecerão em equilíbrio com eles. Por exemplo:
H2O |
+ |
HC lO4 |
H3O+ |
+ |
C lO4- |
(14) |
mas,
H2O |
+ |
H3O+ |
+ |
(15) |
da mesma forma:
NH3 |
+ |
HC lO4 |
NH4+ |
+ |
C lO4- |
(16) |
e
NH3 |
+ |
HC2H3O2 |
NH4+ |
+ |
C2H3O2- |
(17) |
mas,
NH3 |
+ |
H2NCONH2 |
NH4+ |
+ |
H2NCONH- |
(18) |
TABELA 2 - Produtos iônicos, intervalos de pH e pontos neutros de alguns solventes
Solvente |
Produto iônico |
Intervalo de pH |
Produto Neutro |
H2SO4 |
10-4 |
0 - 4 |
2 |
H3CCOOH |
10-13 |
0 - 13 |
6,5 |
H2O |
10-14 |
0 - 14 |
7 |
C2H5OH |
10-20 |
0 - 20 |
10 |
NH3 |
10-29 |
0 -29 |
14,5 |
O conceito do sistema solvente tem sido extensivamente usado como um método de classificação de reações de solvólise. Por exemplo, pode-se comparar a hidrólise de haletos não metálicos com suas solvólises por solventes não aquosos:
3 H2O |
+ |
OPC l3 |
OP(OH)3 |
+ |
3 HC l(g) |
(19) |
|
3 ROH |
+ |
OPC l3 |
OP(OR)3 |
+ |
3 HC l (g) |
(20) |
|
6 NH3 |
+ |
OPC l3 |
OP(NH2)3 |
+ |
3 NH4C l |
(21) |
Tem sido feito um uso considerável destas analogias, especialmente no que se refere a compostos de nitrogênio e suas relações com amônia como solvente.
Uma crítica ao conceito do sistema solvente é que ele se concentra em reações iônicas em soluções e nas propriedades químicas do solvente, negligenciando as propriedades físicas. Por exemplo, reações em oxicloreto de fósforo (=cloreto de fosforila) foram sistematizadas em termos de autoionização hipotética:
OPC l3 |
OPC l2+ |
+ |
C l- |
(22) |
ou
2 OPC l3 |
OPC l2+ |
+ |
OPC l4- |
(23) |
Substâncias com maior concentração de íon cloreto podem ser consideradas básicas e substâncias que retiram íon cloreto do solvente, com a formação do íon diclorofosforila, podem ser consideradas ácidas:
OPC l3 |
+ |
PC l5 |
OPC l2+ |
+ |
PC l6- |
(24) |
Estudos extensivos de reações entre doadores de íons cloreto (base) e aceitadores de íon cloreto (ácido) foram conduzidos por Gutmann, que as interpretou em termos do equilíbrio acima. Um exemplo é a reação entre cloreto de tetrametilamônio e cloreto de ferro(III), que pode ser acompanhada por titulação ou por condutometria:
(H3C)4N+C l- |
+ |
FeC l3 |
(H3C)4N+FeC l4- |
(25) |
que foi interpretada por Gutmann em termos de:
(H3C)4N+C l- |
(H3C)4N+ |
+ |
C l- |
(26) |
|||
FeC l3 |
+ |
OPC l3 |
OPC l2+ |
+ |
FeC l4- |
(27) |
|
OPC l2+ |
+ |
C l- |
OPC l3 |
(28) |
Meek e Drago mostraram que a reação entre cloreto de tetrametilamônio e cloreto de ferro(III) ocorre de imediato em trietilfosfato [OP(OEt)3], assim como em oxicloreto de fósforo [OPCl3]. Eles sugeriram que as similaridades nas propriedades físicas dos dois solventes, principalmente na constante dielétrica, são mais importantes nesta reação do que as diferenças nas propriedades químicas, como a presença ou ausência de autoionização para formar íons cloretos.
Uma das principais dificuldades do conceito do sistema solvente é que na ausência de dados, tenta-se força-la mais do que seria justificável. Por exemplo, pode-se esperar que a reação de haletos de tionila com sulfitos em dióxido de enxofre líquido ocorram da seguinte forma, assumindo que ocorra a autoionização:
2 SO2 |
SO2+ |
+ |
SO32- |
(29) |
De acordo com isto, sais de sulfitos podem ser considerados básicos pois aumentam a concentração de íon sulfito. Pode-se esperar então que os haletos de tionila se comportem como ácidos devido à dissociação para formar íons tionila e haletos:
SOC l2 |
SO2+ |
+ |
2 C l- |
(30) |
A reação entre sulfito de césio e cloreto de tionila pode agora ser considerada como sendo uma reação de neutralização na qual os íons de tionila e os íons sulfito se combinam para formar moléculas de solvente:
SO2+ |
+ |
SO32- |
2 SO2 |
(31) |
Além disso, soluções de sulfito de césio e de cloreto de tionila em dióxido de enxofre líquido geram os produtos esperados:
Cs2SO3 |
+ |
SOC l2 |
2 CsC l |
+ |
2 SO2 |
(32) |
Além disso, o comportamento anfótero do íon alumínio pode ser verificado no dióxido de enxofre tão prontamente quanto na água. Assim como o A
l(OH)3 é insolúvel em água mas dissolve de imediato em soluções ácidas ou básicas, o Al2(SO3)2 é insolúvel em dióxido de enxofre líquido. A adição de base (SO32-) ou de ácido (SO2+) faz o sulfito de alumínio se dissolver e ele pode ser reprecipitado por neutralização.A aplicação do conceito do sistema do solvente na química do dióxido de enxofre líquido estimulou a elucidação de reações como a do sulfito de alumínio. Infelizmente não há nenhuma evidência direta da formação de SO2+ em soluções de haletos de tionila. De fato, há evidência do contrário. Quando soluções de brometo de tionila ou de cloreto de tionila são preparadas em dióxido de enxofre marcado, 35S, quase não há troca. A meia vida para a troca é de cerca de dois anos ou mais. Se ocorresse ionização:
2 S*O2 |
S*O2+ |
+ |
S*O32- |
(33) |
|
SOCl2 |
SO2+ |
+ |
2 C l- |
(34) |
deveria-se esperar uma rápida mistura de enxofre marcado e não marcado nos dois compostos. A falta desta mistura rápida indica que a Eq. 33 ou a 34 (ou ambas) estão incorretas.
O fato do brometo de tionila marcado fazer troca com o cloreto de tionila indica que talvez a ionização mostrada na Eq. 34 realmente ocorra como:
SOCl2 |
SOC l+ |
+ |
C l- |
(35) |
Em um solvente com permissividade baixa como o dióxido de enxofre (e = 15,6e o a 0°C), a formação de íons altamente carregados como SO2+ é desfavorecida energeticamente.
Quando as espécies iônicas formadas em solução são conhecidas, a abordagem do sistema do solvente pode ser útil. Em solventes que não conduzem à formação de íons e dos quais pouco se conhece acerca da sua natureza ou da existência de íons, deve-se tomar cuidado. Nossa familiaridade com soluções aquosas de alta permissividade (e
H2O = 88,0e o), caracterizada pelas reações iônicas, tende a criar atitudes preconcebidas com relação a outros solventes e a tentar estender o conceito do sistema do solvente.